“Nada mudou”, diz o personagem de Lucas Kankava quando ele e Mzia Arabuli passam pelo prédio público que está na fronteira entre Geórgia e Turquia. Como se esperasse que, ao por os pés para fora do seu país, encontrasse ou sentisse algo de diferente. Como se a realidade ao seu redor fosse mudar de acordo com a arbitrariedade das burocracias que definem as fronteiras entre países.  

Ele, que procura uma menina trans que cruzou essa mesma fronteira há algum tempo. Junto da tia da menina, que busca se reconectar com ela para reatar a ruptura da rejeição familiar. Que quer desfazer algo que talvez não possa ser desfeito. Em uma cena que tem algo de simbólico nessa ideia de que aquela fronteira assim como tantas outras regras rígidas e conceitos não é nada mais que o fruto de uma imaginação coletiva. De um consenso artificial.  

Sem nunca entrar de verdade em discussões acerca disso. “Caminhos Cruzados” lida com a existência inerentemente marginal da transsexualidade ou das sexualidades não normativas a partir de um drama que não está concentrado nem no debate e nem tanto na investigação do mistério que tem em seu centro. O de onde pode ter ido parar essa menina.  

O que há de mais impactante no que sobra disso é o drama relacional destes personagens. O da relação estilo Central do Brasil da mulher amarga e do menino (como bem notou o crítico André Guerra). Mas aqui com mais especificidades. Como o fato dela talvez enxergar nele ainda um resquício do menino que ela enxerga na neta. Embora ela nunca vá de fato articular qualquer traço de transfobia nessa busca. O que ela quer é o reencontro. A reconexão.  

Mzia Arabuli não necessariamente “rouba” a cena já que ela é, afinal, co-protagonista de Caminhos Cruzados. Mas ela é responsável por um bocado do peso dramático que o filme tem. Ao criar uma personagem tão complexa quanto carismática. Que se constrói a partir de uma dureza superficial que carrega consigo também uma fragilidade. 

Em paralelo, a advogada vivida por Deniz Dumanlı a princípio soa como personagem deslocada em um drama tão bem resolvido nessa relação entre a mulher e o menino. Mas que conquista o espectador aos poucos. Até mesmo dando estrutura a um filme em que a investigação não importa tanto quanto esse drama sobre os, bem, “caminhos cruzados” de todos esses personagens de algum modo rejeitados nos lugares de onde eles vieram. 

Nessa jornada, Levan Akin lida com bastante do simbolismo para o literal da imagem. Os planos amplos à beira do estreito de bósforo. Os pés das pessoas caminhando pelos becos de Istambul. O ir e vir de barcos, ônibus, carros, trens. Em um lugar de passagem. Em um país de passagem. Que existe entre a Europa e Ásia. Que tem um simbolismo por si.  

No todo, o filme não vai muito além dessa ideia que se repete. Correndo o risco de cair em um lado simplista do drama europeu contemporâneo. Mas não por isso, perde uma potência dramática muito pautada nas atuações do seu trio de personagens principais.