Assisti “Gosto de Cereja” quando comecei o meu processo de pensar o cinema como uma ciência imersa nas humanidades e questões sociais. Naquela época, o filme do iraniano Abbas Kiarostami me levantou reflexões sobre a vida, a solitude e o sentido de estarmos aqui. Revisito-o, neste momento, com as mesmas colocações, no entanto, com uma compreensão maior sobre Badii (Homayoun Ershadi) e como o diretor nos entrega uma das melhores abordagens relacionadas à morte e ao fluxo da nossa existência. 

Seu cinema é carregado de poesia, inspiração e beleza, ao mesmo tempo em que mostra a dura realidade da vida. Em “Gosto de Cereja” é curioso como todos esses elementos estão constantemente presentes na busca de Badii por alguém que enterre seu corpo. Como o próprio personagem diz podemos entender seus motivos e sua jornada, mas não conseguimos sentir por ele a dor que lhe aflige. Assim como todas as pessoas que este tenta recrutar para sua missão pelas ruas de Teerã. 

O roteiro, também assinado por Kiarostami, nos coloca dentro do carro do protagonista, onde quase 70% da ação narrativa se desenvolverá. Ele percorre as ruas e redondezas da capital do Irã, oferecendo caronas para pessoas a quem questiona sobre o que fazem da vida e, de certa forma, o que as motiva a viver. Busca conhecer, ao menos superficialmente, o indivíduo para que possa soltar sua proposta. Isso evidencia o quão corriqueira, dramática e profunda é a narrativa abordada em “Gosto de Cereja”.

De carona pela vida

Por meio desses diálogos, há também uma perspectiva sobre a condição social no país. Três pessoas aceitam a carona oferecida por Badii, todos estrangeiros que visam chances melhores de sobrevivência no Irã do que em sua terra natal. As perguntas que lhes são feitas pelo protagonista acerca de suas famílias e seu trabalho mostram ainda um anseio por uma humanidade simples, tangível e demasiadamente comum, que pode estar perdida na perspectiva de Badii. 

Neste processo, a reação dos convidados salienta ainda alguns entendimentos diante da brevidade da vida. O soldado curdo, por exemplo, se incomoda tanto com os questionamentos quanto com a proposta, escolhendo fugir pelas montanhas; ao passo que o muçulmano, estudante no seminário de Teerã, recusa a missão devido a motivos religiosos. Para ambos, o protagonista acusa as vantagens econômicas que lhes traria, contudo permite-se discutir a sua dor e os sentimentos de frustração que carrega com a figura religiosa. O que nos prepara para entendermos como o terceiro e último personagem aceita a sua proposta. 

Com um longo monólogo contra o suicídio, é a figura do professor do Museu Natural que chega mais próximo de contrariar o questionamento de Badii sobre ninguém estar em sua pele e sentir o que lhe atormenta. Não é de surpreender que suas palavras afetem o personagem principal a ponto de este sentir a necessidade de reafirmar aquilo que busca deste o primeiro momento em que nos deparamos consigo em tela. É daí que entendemos também porque o gosto de cereja é tão simbólico tanto para o professor turco quanto para Badii. 

Por trás do pôr-do-sol

Me chama atenção como toda a proposta narrativa acontece em um momento fixo no tempo: o pôr-do-sol. Lido como um momento de renovação, esperança, conexão e contemplação da natureza; toda a busca de Badii se concentra nessa hora dourada, aprofundando as intensas reflexões sobre a vida e a morte suscitadas. A fotografia de Homayun Payvar utiliza planos fixos e longos, passando a sensação de estarmos assistindo a vida acontecendo, algo que se encaixa na forma como a edição do filme organiza o fluxo de diálogos, sem cortes que gerem quebras ou elipses. Tal escolha reforça o realismo e naturalismo impresso por Kiarostami em seu cinema, como uma marca de autenticidade. 

A cinematografia cria ainda um rico contraste entre a luz do momento, a coloração amarela que se exacerba e o verde musgo esperança que veste o protagonista. A disparidade entre as cores forja ainda um cenário belo em parceria com a paisagem inóspita e rústica na qual Bardii planeja ser enterrado. A areia, as pedras, as poucas e resistentes árvores e a poeira são ingredientes para que reflitamos a pequenez da existência e sua preciosa necessidade que soa efêmera diante do gosto de cereja. 

Assim, vemos com mais detalhes que o maior trunfo de Kiarostami é revelar a preciosidade da existência de forma simplista e habitual, utilizando a busca pela morte como suporte principal para que conheçamos a nossa jornada e escolhamos a súbita e intensa permanência. O diretor e roteirista faz isso sem ter que trilhar caminhos piegas e lugar-comum, pelo contrário, procura exibir e equilibrar o desencanto, a amargura e a alegria. Afinal, se “a terra nos dá tudo que é bom e tudo que é bom volta a terra” – como bem enfatiza Badii – existe o momento certo de nos unirmos a ela e ele não tem gosto de cereja.