Sendo um dos grandes pensadores da atualidade, é de se esperar que um filme do escritor Paul B. Preciado, ainda mais um que carrega as palavras “minha biografia” no título, gere expectativas. Até porque o sujeito sabe escrever sobre si. Seu livro “Testo Junkie”, por exemplo, é metade diário de transição de gênero, metade teoria do contemporâneo e inteiramente explosivo.

Sua palavra é poderosa porque Preciado sabe costurar livremente pelo rico arsenal filosófico, indo de Burroughs a Foucault em um piscar de olhos. A questão que surge diante deste “Orlando” então é: pode o autor fazer com a câmera o que faz com a caneta?

“Orlando”, o romance de Virginia Woolf, é tomado por Preciado como marco na literatura trans. Daí a identificação do diretor estreante com o protagonista do livro, que lá pelas tantas da narrativa acorda no corpo de uma mulher. A estratégia de Preciado é a seguinte: contar sua história de vida através do romance, convocando uma miríade de atores queer para interpretar a personagem. Misturando ficção e documentário, Preciado coloca esses corpos para narrar suas respectivas trajetórias, nas quais relatos tirados do livro se misturam a outros indubitavelmente reais. No processo, alguns episódios do romance são reimaginados: é assim que a rainha Elizabeth é substituída por um psiquiatra, figura de autoridade à qual pessoas trans devem se submeter para provar sua sanidade.

DISCURSO REPETITIVO

É interessante. Mas o primeiro problema do filme é que Preciado está longe de saber criar imagens visualmente distintas. Uma passagem no início da projeção rodada em um bosque me trouxe à mente um outro experimento recente, que também tira da palavra escrita a matéria-prima para a ficcionalização cinematográfica: falo de “Um Casal”, de Frederick Wiseman, que coloca uma atriz para interpretar as cartas de Anna Tolstói ao célebre marido. No caso, a lembrança se mostra extremamente desfavorável a Preciado: o filme de Wiseman oferece inúmeros exemplos de como representar cinematograficamente um espaço muito similar – um bosque – de forma bem mais interessante.

Falo aqui, claro, em termos pictóricos. É que a falta de uma imagem que fale por si aflige uma porção significativa de “Orlando”. Boa parte do tempo, Preciado se lança num falatório em off incessante e, por vezes, francamente irritante. Quando se utiliza de procedimentos fílmicos, o resultado é pueril, como no match cut que passa do cineasta escrevendo em uma escrivaninha a Orlando executando a mesma ação. Como se depois de tudo que foi dito, precisássemos de ainda mais essa lembrança da relação entre o romance e as vidas trans em tela. É estranho.

Ou melhor: excessivamente pedagógico e um pedagogismo que não aparece em seus textos. Aqui uso pedagogismo no sentido de um discurso reiterativo e, em alguma medida, óbvio. Melhor dizendo: em seus textos, mesmo os mais acadêmicos, o autor é menos discursivo do que criativo. No filme, o discurso soa reiterativo, pleonástico.

FORÇA FINAL

E no entanto, é inegável que o filme tem força. Como? Em momentos como nos relatos de atores sobre a dificuldade de acesso à terapia hormonal pelas vias legais, por exemplo, que tornam explícito o modo como os fármacos sempre pressupõem um uso que é codificado binariamente. Ou seja: quando o diretor relaxa e deixa “Orlando” correr solto, a coisa engata – até porque alguns dos rostos filmados por Preciado carregam bastante poder expressivo.

Nesse sentido, o terço final, se não redime totalmente os tropeços do diretor pelo caminho, chega ao efeito catártico desejado, especialmente no resgate de imagens de arquivos de algumas das pioneiras trans. De modo que a resposta à pergunta feita no início do texto – pode o autor fazer com a câmera o que faz com a caneta? – só pode ser uma: depende. Desde que Preciado use mais a sorte do que o juízo, ele se sairá bem.